sexta-feira, fevereiro 02, 2007

No "coração" do Marburg

2005, Abril 16. Disseram-nos laconicamente que o avião está pronto. Agora o que até antes aparecia distante era, já sim, uma realidade palpável. A comitiva é numerosa. Jornalistas de quase todos os órgãos do país (o que é raro), enviados de Portugal, EUA e Reino Unido e da distante China. Pressionados pela opinião pública, o ministério da saúde e o governo no geral, foram obrigados a dar-nos a ver o outro Uíge, até então fustigado por um vírus mortal, altamente contagioso a que se deu o nome de Marburg. Marburg porque era uma recordação (mesmo medonha) ao aparecimento de um vírus semelhante na cidade Alemanha de Marburg!!! Na altura profundamente mortal, ceifando mais de 60 cientistas. O boato, sobre o marburg angolano, corria solto em Luanda e no resto do país. Contas feitas a letal febre hemorrágica matava rápido demais. Pior que o ébola do Congo. Na versão oficial tudo começou em Março, mas no terreno é que tudo se deu no ano anterior, 2004. O macaco verde foi acusado de ser vector da doença. Havia quem negava. As audiências de rádio e TV aumentavam. O país acompanhava com o coração condoído e respiração suspensa a marcha da morte. Até ao momento cerca de duzentas pessoas sucumbiram! A pergunta era: Agora que estamos em paz, porque tanto? A mobilização começava. O Uíge está fechado por ar e terra! A antiga cidade Carmona ficava isolada. O interesse internacional aumentava. No aeroporto de Luanda, sem cerimónias, vimos material de bio protecção a ser passado de mão em mão. Luvas, gorros e batas se haver necessidade. Pensei cá comigo, não vá o diabo tece-las. O friozinho na barriga, tão habitual nos repórteres de guerra quando vão à frente de combate. Acomodação no gigante dos ares e num ápice Luanda fica... longe. 35 Minutos depois aterrava-mos no Uige. O Antonov Russo faz-se a pista.11 e 20 da manhã. È o primeiro avião a aterrar em duas semanas. Há saudações, mas não contactos, porque assim manda a prudência. O vírus, dizia-se nas campanhas poderia ser passado por um abraço, um toque ao cumprimentar uma pessoa infectada. Uma comitiva foi montada as pressas e de autocarros passávamos pelas estreitas ruas de uma das maiores cidades do norte de Angola. O destino é Songo, um municipio também duramente afectado. Eu aproveito, de telemóvel, descrever para Luanda tudo o que vejo. A Ecclésia é a primeira a transmitir do Uige a realidade, narrada do local. È, com isso responder às questões do povo e os boatos... Agora são 40 Kms para encontrar um dos " centros" do Marburg. Cai uma chuva miúda. A marcha é lenta porque a estrada não ajuda. Começa-se a ficar sem rede. Problemas de comunicação no interior são um problema para os escribas. Novo trabalho para Luanda, jornal central. Chegados ao local, directos ao hospital. Descemos do autocarro. Aproveito para fala com populares. Dados novos, exclusivos. Esboço sorriso. Depois as autoridades e a ladainha constante da falta de condições. Missão cumprida e a competente regressa ao Uíge. São cerca de 3 da tarde. Outro trabalho para Luanda. Tónica central há medo, mas há vida no Uíge. Conferência de imprensa, visita ao Hospital. Aqui acontece o inevitável quando uma equipa vai ao terreno buscar cadáveres. Notícia aterradora, eram membros da mesma família. As escolas funcionam. Nos mercados vendia-se de tudo um pouco, menos carne de macaco. Ora essa! Uma maratona musical abafa ao fundo o grito de óbito, à moda africana, dos parentes enlutados. Os cadáveres são enterrados em valas comuns, por técnicos de saúde. As vezes o vírus mata todos os membros da mesma família, contara-me no coração do Marburg. A fome e a sede apertavam. Vi dois conhecidos escribas angolanos, companheiros de viagem a seguirem ao mercado, o tal onde tudo se vende. Vendia-se do ovo à bicicleta. Decidi segui-los. Entabulamos conversa com uma senhora de idade respeitável. Com o seu peso avantajado quase fazia sofrer um pequeno banco. Em resposta ao meu companheiro de trabalho, o mais extrovertido ela foi directa. " Em Luanda estão a falar muito, mas resolvem pouco". De repente deixamos o Marburg para viveres para " aldrabar" o estômago e os competentes acompanhantes etílicos. No fim da jornada um banquete e a romagem rápida ao aeroporto. Já era noite. A pressão era maior porque aquele aeroporto não está habilitado a voos nocturnos. No avião, concluí - porque a vendedora de ovos cozidos, mesmo parca em palavras, me passou nas entrelinhas esta ideia. O Uíge está isolado, mas (ainda) não desesperado por ajuda apesar dos corações extremamente condoídos com a força avassaladora do Marburg. Espero voltar ao Uíge, voltar a falar (muito mais) com a vendedora e claro saborear outros, agora sem o vírus mortal... PS: esta é uma pequena homenagem as vitimas do marburg e a quem lutou para travar a sua propagação rápida. Mvieira

2 comentários:

Anônimo disse...

Amigo Manuel Vieira, esse é seu email que me vou enviado no tempo em
que
escrevia, OS ATALHOS DA UTOPIA. Guardei-o como muito carinho. Obrigado.

- QUANTO ao seu blog, devo louvar a iniciativa. Desde o ano passado que
periodicamento busco tomar contacto com seus escritos. Também li um
artigo
meu sobre jornalismo. Como deve imaginar, fiquei feliz.

- O BLOG está bem concebido. Os textos escritos de forma simples. As
fotos
são lindas. Tudo isso como ícones, que remetem para a realidade
huilana.
Força, continua escrevendo. Amando a terra de seu umbigo. Aliás, cada
um de
nós escreve sempre a partir de um lugar: geográfico, cultural, étnico
ou
outro, que funcionam como âncoras da vida. De resto, avance!

Muita boa sorte e coragem.

Abração
Augusto Alfredo

Anônimo disse...

Uige, cidade sofrida. Orfã deste regimee. È muito bom quando ela é recordada. Bjs
Lucrécia Maria
Porto - Portugal