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Ainda hoje, tantos dias passados, não sei de quem foi a culpa do "pecado original", desconfio apenas, mas bem haja a quem soube devolver-nos, por uma noite, o prazer de ouvir um jogo cantado na rádio como nos "velhos tempos". A estrada para Lisboa cada vez mais curta, eu a fugir dos 120 - só um bocadinho - na ânsia de chegar a tempo para ver o fim da contenda - como se diz em futebolês - na TV, e eles ali aos gritos, a espicaçarem-me ainda mais a adrenalina. Lembrei-me então das tragédias que se dão nas pressas que vão galopando a toque de emoção e abrandei com gosto, mas a adrenalina não baixou. E lá continuavam eles numa sonora insistência que me transformou o carro, por momentos, no quarto da minha infância. O tal onde tantas vezes, sozinho, quase me sentia nos estádios onde não podia ir. A zanga dos meus pais com o futebol radicava no risco de mandar o filho para "aquela barafunda" e eu, resignado, "via" na rádio o que não me entrava pelos olhos ao vivo. Amava a rádio e casei-me com ela.
Até hoje. Entrei na rádio a brincar, no tempo da pirataria, e quando dei conta estava parado na redacção da TSF. Eu miúdo - 21 anos que pareciam 16 -, inexperiente, meio acanhado a um canto e eles já se passeavam com o peso das estrelas que me pairavam na imaginação desde sempre. Reconhecia cada voz e dava-lhe um nome, acertava sempre. Estranhava os rostos e as figuras, mas tentava habituar-me à estranha sensação de dar corpo e imagem real a quem conhecemos de viva voz mas nunca encarámos pessoalmente. Não me deslumbrava, admirava-me, com simplicidade e humildade, perante todo aquele cenário que sempre fez parte dos meus sonhos. Duas horas encostado a uma parede e ninguém parou nem reparou em mim no primeiro dia. Era a TSF no auge da "rádio em directo". Muitas notícias para pouco tempo. Mais uma piscadela de olhos e já estava num estádio. Microfone em punho e a voz deles nos meus ouvidos, a dizerem o meu nome e a pedirem "bitaites". António Esteves para aqui, António Esteves para ali. Suprema vingança.
Os meus pais passavam o fim-de-semana com o rádio aos gritos lá em casa, e eu no campo, finalmente no campo, a dizer as coisas que ouvia quando me fechavam no quarto para não fugir para a bola. A rádio libertou-me da clausura e eu paguei-lhe com um amor incondicional. Até hoje. Cada um é como cada qual e não se compara o que não tem comparação. Foi por isso que naquela terça-feira, mesmo moído pela folia de uma noite de máscaras que não dispenso já lá vão uns anos, ouvi com igual prazer, e longe da sonolência, os "quatro mosqueteiros" da rádio que é a minha. A rádio do rigor mas também da emoção, da isenção mas também do espectáculo, do humor e da fina ironia. Os dias da rádio vieram no seu melhor, em dois duetos. Um quarteto de luxo em esplendor no éter. Na Antena 1, David Borges e Carlos Daniel.
Na TSF, Fernando Correia e Jorge Perestrelo - hoje apenas uma das melhores recordações de quem a ama a rádio. Quatro dos melhores de sempre. O David, com a sua voz gutural e o seu pragmatismo rigoroso de quem sabe muito bem do que fala, o Carlos com um ritmo emocionante e compassado e a memória de elefante que nos deixa de boca aberta, dois artistas numa deliciosa harmonia com um saboroso ritmo desigual numa melodia em futebol maior. Do outro lado a fina flor dos 89.5, o prazer do futebol em FM. A voz respeitável e bem disposta do Fernando que nos conta a "estória" dos jogos, de cor e sem cábula, como se já fosse a crónica de um jogo passado, o Jorge num estilo irreverente e inigualável de emoção e espontaneidade, um português com o sangue africano a ferver-lhe na guelra. Tinhas o coração junto à boca Jorge! Eles ali a cantarem nas colunas o jogo da Luz e eu a saltar de posto em posto para não perder um segundo de cada dupla. Perdi-me em recordações e histórias comuns. Eles numa inesquecível sinfonia, e eu, adrenalina ao rubro, a beber cada um dos lances daquele Benfica-Porto pelas colunas do meu carro, que parecia o meu quarto de menino onde comecei a amar a rádio. Até hoje. Comecei com o Jorge Perestrelo, na TSF e na SIC - nas coisas do futebol onde agora só participo às vezes - mas trabalhei com todos eles com igual prazer. Eu menino, a querer ser como os grandes na profissão, e eles, já homens e estrelas da rádio, a darem-me tudo sem eu pedir.
Saber e amizade, simpatia e admiração, apoio e nas orelhas. Seguimos muito tempo pela mesma estrada, hoje seguimos por direcções opostas. Só o Jorge, num repente inesperado disse adeus cedo demais. Parece que foi ontem. Encontrámo-nos de forma inesquecível, naquela terça-feira, no meu rádio, que me deu tanto prazer mascarado de telefonia do meu quarto, a cantar-me o jogo pelas colunas do meu carro. Voltei a ser menino outra vez e a desejar estar lá, no estádio, de microfone em punho, a ajudá-los na cantoria de um jogo emocionante. Não sei de quem é a culpa do "pecado original" - desconfio apenas - mas bem haja a quem teve arte para nos devolver assim, sem custo acrescido, os dias da rádio que eu amo, onde vivi mais de metade da minha vida de jornalista.
São sem dúvida quatro dos melhores - o Jorge nunca vai morrer para a História da Rádio - e tal como outros que não cabem nesta estória serviram de mestres a uma nova geração cheia de valor, que também já nos canta os jogos na rádio com muita arte: Hélder Conduto - o meu preferido -, João Ricardo Pateiro, Alexandre Afonso, Paulo Garcia. Que amem tanto a rádio como eles sempre a amaram e respeitaram. Eu amo desde que me conheço, até hoje... ANTÓNIO ESTEVES, JORNALISTA DA SICps: Este artigo reflete ( também) a nossa paixão pela rádio!!!!
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